Teoria polivagal – A capacidade de sentir-se seguro
Decidi começar a escrever sobre o assunto pois não encontrei nada a respeito em língua portuguesa. Há alguns videos pela internet no idioma porém não abordam o assunto conforme Stephen Porges, o “pai” da teoria Polivagal propõe. Este é o primeiro texto de alguns que devo escrever sobre o assunto e espero conseguir reunir e disseminar o conhecimento que adquiri nos livros que li, na experiência clinica de consultório que desenvolvi e no aprendizado que tive com as pessoas incríveis e brilhantes ao longo deste caminho.
O sistema nervoso autônomo
Nos livros de fisiologia clássicos, conhecemos o Sistema Nervoso Autônomo como um sistema que lembra aquele carrinho de bate-bate do parque de diversões: há o sistema simpático (que seria o acelerador) e o parassimpático (que seria o freio): O sistema simpático está ligado com processos de estresse, luta e fuga dos animais. Funciona com suas ramificações vindas da medula espinhal, tendo por exemplo uma de suas características, elevar os batimentos cardíacos e a frequência respiratória.
Enquanto isso, o sistema parassimpático (baseado no nervo vago) está conectado com a função de congelamento, desmaio e desligamento dos sistemas, ativado quando há um grande risco de vida e fugir não seria mais suficiente. Répteis podem passar muitas horas neste sistema por terem sangue frio, presas “fingem de mortas” para se tornarem menos atrativos para seus predadores, como instinto de sobrevivência.
O sistema nervoso autônomo, de grosso modo, controla os níveis de estresse e age rapidamente através dessas vias para que o animal possa sobreviver.
A Teoria Polivagal
Nos anos 80, Stephen Porges, um cientista neuropsiquiatra, que estudava a variabilidade dos batimentos cardíacos (que tem tudo a ver com o SNA), descobriu que havia mais uma variável neste sistema: O nervo vago, que até onde se sabia tinha funções específicas do sistema parassimpático, também tinha mais uma ramificação, o vago ventral. E, diferente de seu vizinho mais antigo, vindo de herança dos répteis, ele é uma enervação que tem bainha de mielina, aumentando a velocidade da comunicação, tendo também outros tipos de ramificações e ligações.
Enquanto o vago dorsal sai da região do quarto ventrículo do crânio, o vago ventral sai do tronco cerebral, de um lugar chamado núcleo ambíguo e tem ligação com outros nervos cranianos.
Com esta nova descoberta anatômica, Porges descobriu que o sistema nervoso autônomo na verdade não era um carrinho de bate-bate, ele era um sistema muito mais complexo e com variedade muito maior de funções a desempenhar.
Teríamos agora três ramificações anatômicas:
- Sistema simpático – Ramificações medulares
- Sistema parassimpático – Vago dorsal
- Vago ventral
Estes três sistemas, geram cinco comportamentos em nós mamíferos, que eram apenas duas:
- Sistema simpático + vago ventral: “Jogo”. Ativação com segurança e calma, quando jogamos por esporte, quando competimos amistosamente, quando filhotes de animais brincam de caçar e lutar entre si.
- Sistema simpático + vago dorsal: Ansiedade, congelamento.
- Sistema simpático: Luta e fuga
- Vago dorsal: Depressão e Congelamento
- Vago ventral + dorsal: calma com entrega e segurança. Relações amorosas e estáveis.
Sabe-se também que a capacidade de aprendizagem efetiva, criatividade e desenvolvimento pessoal e emocional também estão ligados à ativação do vago ventral. Resumidamente, atuação do vago ventral está ligada a sentir-se seguro.
Segundo Porges, na homeostase do sistema, recuperamos a capacidade de nos mantermos estáveis, tanto internamente (interocepção) quando em grupo, para que possamos criar e ampliar nossas capacidades mais profundas como seres humanos.
Por consequência, ele nomeia um novo sistema: a neurocepção. A capacidade do sistema nervoso perceber as alterações externas do ambiente para agir e atuar, muito antes dos sistemas corticais criarem significados e gerarem reações racionais.
Nervos cranianos
Porges conta também que alguns nervos cranianos tem interação direta com alguns outros, formando parte de rede neuroceptiva:
- Trigêmeo (NC V)
- Facial (NC VII)
- Vago (NC X)
- Acessório (NC XI)
O rosto e a cabeça
Os pares de trigêmeos e faciais (um para cado lado do crânio) fazem parte de um complexo sistema de interação social baseado na musculatura facial, como as caretas que fazemos para representar nossas emoções e nos expressarmos verbalmente através das palavras e seus significados, no uso da articulação têmporo mandibular (suas tensões, usos nas funções orais (engolir, mastigar, falar, respirar e sugar) e também exercem função importante na regulação da capacidade auditiva, no ouvido médio, através do músculo estapédio (facial) e tensor do tímpano (trigêmeo).
As ramificações do acessório se ligam à musculaturas que conectam e diferenciam o crânio ao resto do corpo. São as estruturas que direcionam os sentidos (olfato, visão e audição) para onde a pessoa quer direcionar sua atenção.
Este sistema funciona em conjunto, ou seja, qualquer alteração que aconteça em um dos pares de nervos, influenciará os outros e por consequência haverá a interação deles com o sistema nervoso autônomo.
Patologias, condições e tratamentos
O desequilíbrio deste sistema pode gerar uma série de condições e patologias cuja causa pode variar muito, desde traumas físicos que modificariam o posicionamento das estruturas do crânio, exposição a traumas psicológicos (contínuos como altos níveis de estresse diários ou pontuais como um evento em específico), depressão, ansiedade ou questões pouco explicáveis, como o espectro do autismo e alguns déficits de aprendizagem e comportamento. Abaixo algumas possibilidades de tratamentos e descobertas recentes sobre o equilíbrio do SNA:
Toque e movimento
Stanley Rosemberg, um Rolfista, estudante da teoria Polivagal e de Manipulação Craniana passou a estudar a influência da manipulação destes nervos cranianos direta ou indiretamente (pensando na biomecânica do sistema de membranas crânio sacrais) e também pensando em movimentos corporais que pudessem influenciar o sistema positivamente. No livro “The healing power of the vagus nerve”, Rosemberg apresenta algumas manobras e exercícios de movimento que podem ser feitas por qualquer pessoa para equilibrar o sistema nervoso autônomo, baseados na Teoria Polivagal, através dos nervos faciais, trigêmeos e acessórios.
Listening Project
Stephen Porges e sua equipe, baseados na própria teoria, criaram um protocolo de músicas processadas em estúdio chamado Safe and Sound Protocol (SSP). Trata-se de cinco sessões de uma hora, feitas em dias consecutivos que através da escuta musical, estimulam as enervações do ouvido médio (facial e trigêmeo) para equilibrar o sistema nervoso autônomo. Há pesquisas publicadas com grandes resultados em crianças autistas, com problemas de aprendizagem e outras patologias. Existem também vários estudos de caso feitos por terapeutas do protocolo com questões de estresse pós traumático, depressão, ansiedade e hipersensibilidade auditiva.
Funções orais
Por estarem ligadas ao nervo trigêmeo e facial, as funções orais (engolir, sugar, respirar e falar) e suas condições funcionais muito provavelmente tem ligação direta com o equilíbrio do SNA. A Rolfista e Fonoaudióloga Beatriz Pacheco tem buscado as relações do trabalho fonoaudiológico com a Teoria Polivagal, tendo desenvolvido inclusive novos exercícios com grandes resultados.
Porges, no livro sobre a Teoria, fala que o controle da expiração tem grande capacidade de regular o SNA. Poderíamos concluir que possivelmente o canto seja uma forma desta regulação, pelo seu controle respiratório e pelo seu trabalho na musculatura facial e de modulação vocal. A dentista Maria José Carvas Pedro, especialista em Reabilitação Neuro Oclusal e dor Orofacial, desenvolveu patentes de aparelhos ortopédicos funcionais que além de corrigir as funções e o desenvolvimento da ATM, parecem ter grande influência no SNA, segundo experiências recentes.
Terapia Crânio Sacral e Manipulação Visceral
Há grandes evidências que as técnicas desenvolvidas por Upledger e Barral tem grande influência no sistema nervoso autônomo. Dentro da Manipulação Visceral e da Osteopatia, há um professor do Barral Institute chamado Éric Marlien que, assim como Stanley Rosemberg, estudou com Porges e associou a manipulação do crânio com a teoria, cujo livro existe apenas em francês, com o título “Le système nerveux autonome de la théorie polyvagale au développement psychosomatique: Applications thérapeutiques et ostéopathiques”.
Hatha Yoga
As posturas de Hatha Yoga têm grande complexidade e variedade em termos corporais e coordenativos, esta enorme gama de possibilidades corporais e a integração das estruturas nos ásanas poderia causar certa regulação do SNA devido a influência mecânica em todas as ramificações nervosas. Como dito anteriormente, a regulação da expiração, segundo Porges, ajuda a regular o sistema nervoso autônomo e sua plasticidade sendo que na prática de Yoga este trabalho com a respiração é feito constantemente, desde o uso de mantras (como o canto), na execução das posturas aos exercícios respiratórios. Talvez uma possível explicação dos efeitos terapêuticos da prática de Yoga esteja fortemente vinculada à Teoria Polivagal.
Relação terapêutica
Apesar dos diferentes métodos e formas de se regular o sistema nervoso autônomo, a relação entre terapeuta e cliente deve ter destaque. Mamíferos tem capacidade de corregulação, ou seja, apenas a presença do outro de forma receptiva e presente é capaz de ajudar na regulação deste sistema. A expressão facial e a prosódia vocal, como dita anteriormente, trazem um ambiente seguro ao outro. Quando nós terapeutas cuidamos para estarmos regulados e presentes para recebermos o que a outra pessoa traz, de forma curiosa e atenta, já estamos ajudando o sistema do outro a estar aberto para se regular e se curar e assim as técnicas ou métodos utilizados seriam infinitamente potencializados.
Conclusão
Este texto é uma tentativa inicial de alimentar informações em português sobre a Teoria Polivagal e a experiência de pessoas talentosas no Brasil e no exterior a respeito de um sistema tão complexo e fascinante como o Sistema Nervoso Autônomo sob a visão de Stephen Porges. Que este trabalho seja estímulo de estudo e desenvolvimento de novos métodos e materiais a respeito do assunto. Questões mais aprofundadas sobre cada assuntos serão discutidas nos próximos textos.
Assista aqui uma série de três vídeos com a explicação e alguns exercícios.
Referências principais:
PORGES, Stephen. The Pocket guide to the Polyvagal Theory: The transformative Power of Feeling Safe. Norton Series, 2016.
MARLIEN, Eric. Le système nerveux autonome de la théorie polyvagale au développement psychosomatique: Applications thérapeutiques et ostéopathiques. Editions Sully, 2018.
ROSENBERG, Stephen. Acessing healing power of the vagus nerve. North Atlantic Books California, 2017.